04/10/2025

Água procura caminho

 Na curva do rio ficam os destroços — o que já não serve à travessia. Amores saturados de pressa, gestos inacabados, palavras que não suportaram o peso do silêncio. O curso das águas não se detém; ele carrega apenas o que ainda pulsa, o que tem densidade suficiente para continuar. O resto, o leve demais, o frágil demais, se encosta na margem e apodrece devagar, como se o tempo ali fosse mais viscoso.


Vivemos num mundo onde os vínculos se desfazem antes de secar a primeira lágrima. O toque virou metáfora, e a presença — notificação. Tudo flui, dizem, mas o que flui demais não cria raiz; apenas atravessa, como um corpo sem memória. Cada encontro é um estilhaço, um lampejo que já nasce condenado ao esquecimento. A liquidez das relações não dissolve a solidão, apenas a disfarça com reflexos e promessas.


O rio segue — indiferente. Não há culpa na correnteza, apenas instinto. O que presta resiste à força da água, adapta-se, encontra novas margens. O que não presta — e talvez sejamos nós, ou o modo como amamos — fica ali, retido na curva, lembrança de uma permanência que não soubemos sustentar.


E o rio continua, como o tempo, como a vida: carregando e descartando, escolhendo sem escolher, limpando-se do peso dos laços que não soubemos manter.


Amnésia rota ou como não se esquecer

 Como vou enterrar meus cadáveres se o cheiro deles é o único cheiro que me lembra que existo?

Como vou esquecer o passado se ele é a única coisa que me sustenta, mesmo que seja veneno?

Como apagar o presente se ele já nasce morto, um teatro de gestos sem atores?


As pessoas que não esqueci apodrecem dentro de mim como frutas negras.

Não é amor, é rancor — um rancor que se alimenta de memória, um ressentimento que me costura por dentro.

Cada lembrança é um dente cravado na carne.

Eu não quero perdão. Eu não quero absolvição. Eu quero que as coisas explodam, que as promessas desabem, que o esquecimento seja um ácido.


Mas nada desaba. Nada explode.

Tudo permanece: como um cadáver que se recusa ao luto, como uma boca que insiste em falar depois de arrancada.

Eu sou a cova e o coveiro.

Sou amnésia que tarda.

O Parkinson roto.

Eu sou o resto.



27/09/2025

O Dito Pelo Não Dito ou a dor de existir

 

Alguns rostos, muitos rostos  apenas  se erguem na multidão como feridas visíveis, como superfícies onde o peso da existência se imprime com crueldade. São rostos que não chamam, mas puxam o olhar — não pela beleza, mas pelo silêncio mineral que os habita. Neles, o olhar não se oferece como janela, mas como poço: fundo, turvo, impossível de atravessar.

Essas pessoas não caminham, arrastam-se pelo tempo como móveis herdados que ninguém pediu. Estão no mundo como cadeiras empoeiradas em um quarto fechado: cumprem a função da existência, mas sem jamais encontrar quem as ocupe. O absurdo nelas não é conceito, é músculo. É a própria carne que sustenta, todos os dias, o fardo de existir sem motivo.

Falta-lhes o vocabulário da própria dor. O que não se diz apodrece por dentro, transformando-se em pedra encostada no peito. E é isso que vemos no olhar: a ossatura de um sofrimento que nunca encontrou palavra. São rostos que gritam sem som, que carregam no silêncio uma confissão impossível.

E quando cruzamos com eles, somos atravessados. Não é apenas tristeza que despertam, mas uma pena bruta, quase vergonhosa, como se víssemos o absurdo despido diante de nós. Esses rostos lembram que viver não é sempre movimento ou desejo — às vezes é apenas peso. Um peso que se arrasta, que resiste, que permanece como um objeto teimoso na sala vazia do mundo.

Porque alguns rostos, poucos, trazem consigo a lembrança mais incômoda: a de que existir não é metáfora, não é promessa, não é escolha. É destino sem razão. E o olhar, nesses poucos, é o lugar onde o nada se revela nu, lembrando-nos de que viver é suportar o indizível — até que a palavra, se algum dia vier, consiga enfim dar forma à sombra. 

04/09/2025

Uma Mosca

 O voo leve e suave do autoperdão

Pousou na minha mão. 

Pensei que fosse uma mosca

Com a palma da outra mão 

Esmague o bicho 

Perdão aqui não! 

Ora, pois!

01/09/2025

Caixa Postal



Eu queria as cartas que você nunca escreveu pra mim. Queria segurá-las entre meus dedos, sentir a tinta que não existe, o papel que nunca tocou sua mão. Mas elas não existem. Nunca existiram. E mesmo assim, faço minhas próprias cartas, escrevo palavras que ninguém lerá, linhas que se perdem no silêncio da minha gaveta, peso inútil que carrego comigo como se pudesse preencher o vazio que pensei ser seu.

Quis ler você, mas você não postou uma palavra sequer .

 Não foi prosa, nem poema; foi apenas ausência, uma letra muda, um H qualquer;

 e eu me vi lendo páginas com palavras de minha própria esperança, essa coisa que seca antes de chegar ao mar.

 — bem ou mal escritas eu as queria; tortas ou perfeitas; elas gritam dentro do meu peito,

 tremulam minha ossatura e se esmagam contra minhas retinas, mesmo sem existir.


Eu não li suas linhas, não toquei seu corpo, não conheci sua presença em nenhuma forma possível. Tudo que tive foram minhas cartas, trancadas, inúteis, e a certeza de que você nunca seria nada além do que não chegou até mim: as cartas nunca enviadas.

09/07/2025

 

Vc é um grito de desespero Ecoando no meu coração.
Não sou mais seu cão.

Ecocardiograma


 Sou o eco aflito de um desespero que retumba nas ruínas do meu peito.

Já não rastejo sob teu olhar.

Deixei de ser teu cão; 

Agora sou apenas ausência, errância e silêncio.