31/12/2025

Véspera

 O último dia do ano tem um som oco, como um copo esquecido na pia. O calendário vira a página sem cerimônia e deixa no ar a impressão de que algo ficou para trás — talvez o essencial. O tempo não pede licença, não oferece desculpas. Apenas passa, com a indiferença exata das coisas inevitáveis.

Vivemos olhando. O mundo se oferece em excesso, mas o toque ficou raro. Os olhos aprendem a consumir imagens enquanto o corpo desaprende a habitar. A vida acontece em algum lugar adiante, sempre um pouco fora de alcance. Assistimos com atenção, como se observar fosse o mesmo que existir. Não é.

No trabalho, os dias se repetem com pequenas variações. Presenças próximas demais para serem atravessadas. Um “oi” breve sustenta a distância necessária para que tudo continue funcionando. Corpos compartilham o espaço, mas não o silêncio. Há uma economia de gestos, uma contenção quase ética do sentir. Como se o excesso pudesse comprometer a estrutura.

A intimidade não suporta a luz direta. Ela prefere o longe, o intervalo, o que não se confirma. Existe melhor quando não precisa acontecer. Mora no pensamento, no que poderia ter sido dito e não foi, no que se entende sem jamais tocar. É no território da ideia que as coisas se mantêm inteiras. A presença, quando se impõe, fragmenta.

Há algo de absurdamente organizado nisso tudo. Pessoas alinhadas, rotinas ajustadas, sentimentos fora de lugar. O cotidiano avança como um ônibus observado do ponto errado: cheio, ruidoso, seguindo um trajeto conhecido que nunca é exatamente o nosso. Ele passa. A gente observa. E o dia segue, mesmo assim.

Dezembro pesa diferente. Tem cheiro de coisa guardada tempo demais e uma luz cansada que não promete nada. Ele percorre os cantos da memória, abre gavetas que não lembrávamos de ter. Traz versões interrompidas, escolhas suspensas, expectativas que não falharam — apenas não aconteceram.

Dentro, as versões se sentam. Nenhuma acusa. Nenhuma se defende. Todas sabem. O silêncio entre elas é o que mais diz.

Existe, ainda, uma presença constante. Próxima demais para ser nomeada, distante demais para ser vivida. Ela existe melhor no pensamento do que no espaço. Melhor na ausência do que na forma. Não exige futuro, não reivindica sentido. Apenas permanece, como permanecem as coisas que não pedem explicação.

O ano termina sem conclusão. O mundo continua. E a pergunta não se formula inteira — apenas se insinua, baixa e persistente: estamos vivendo ou apenas assistindo com atenção suficiente para confundir uma coisa com a outra?

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