Eu tinha oito, talvez nove anos. O chão não era asfalto, era terra — um pó avermelhado que subia e colava na pele, fazendo da infância um ofício de sujar-se. O povoado era só um ajuntamento de casas, cercado de capim e de silêncios antigos. Ali, o tempo parecia rodar mais devagar, como se o mundo ainda não tivesse aprendido a ser duro.
Brincava com algumas meninas. Ríamos sem motivo, inventando universos com o que havia: pedrinhas, gravetos, restos de nada. Até que encontrei um bem-te-vi morto. Estava caído, leve demais para ser lembrado. Peguei o corpo, talvez com curiosidade, talvez com a estranha ternura que as crianças têm diante da morte, e o atirei nelas — um gesto bobo, sem intenção. Uma delas riu e jogou de volta. O pássaro voou pela última vez, empurrado por mãos pequenas.
E então eu gritei. O som saiu vivo, colorido, quase risonho — um grito que não cabia no corpo. Foi aí que minha mãe apareceu, da porta de casa, com o olhar de quem tenta conter o que não entende. A frase veio como sentença:
menino brinca com menino, menina com menina.
A terra continuou vermelha, o vento seguiu o mesmo, mas algo em mim se partiu. Não em ruído — em silêncio. Senti, sem saber nomear, que havia algo errado em mim que eu não via. Que o jeito de gritar, de rir, de estar, precisava ser aparado.
Desde aquele dia, minhas brincadeiras foram se encolhendo como bicho assustado. As meninas se afastaram. Os meninos nunca chegaram. Fiquei no meio, sem bordas, sem território — um entre-lugar feito de poeira e hesitação.
Ali começou o exílio: não o de quem vai embora, mas o de quem não é mais chamado. Tudo o que eu fazia passou a ser lido por um filtro que eu ainda não compreendia. Se eu corresse, era um correr errado; se risse, era um riso errado. Eu era o próprio erro, antes mesmo de ser nomeado.
Hoje entendo. O bem-te-vi era um presságio. Morto, mas ainda servindo de brinquedo — como eu, lançado de um lado a outro, sem pouso, até perder o voo.
Ser o que se é tem preço. A solidão é a fatura. E eu sigo pagando, inteiro, caro — porque nada é mais dispendioso que existir à vista do mundo.

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