25/10/2025

Bem-ti-vi, Mal-me-quer

Eu tinha oito, talvez nove anos. O chão não era asfalto, era terra — um pó avermelhado que subia e colava na pele, fazendo da infância um ofício de sujar-se. O povoado era só um ajuntamento de casas, cercado de capim e de silêncios antigos. Ali, o tempo parecia rodar mais devagar, como se o mundo ainda não tivesse aprendido a ser duro.


Brincava com algumas meninas. Ríamos sem motivo, inventando universos com o que havia: pedrinhas, gravetos, restos de nada. Até que encontrei um bem-te-vi morto. Estava caído, leve demais para ser lembrado. Peguei o corpo, talvez com curiosidade, talvez com a estranha ternura que as crianças têm diante da morte, e o atirei nelas — um gesto bobo, sem intenção. Uma delas riu e jogou de volta. O pássaro voou pela última vez, empurrado por mãos pequenas.


E então eu gritei. O som saiu vivo, colorido, quase risonho — um grito que não cabia no corpo. Foi aí que minha mãe apareceu, da porta de casa, com o olhar de quem tenta conter o que não entende. A frase veio como sentença:

menino brinca com menino, menina com menina.


A terra continuou vermelha, o vento seguiu o mesmo, mas algo em mim se partiu. Não em ruído — em silêncio. Senti, sem saber nomear, que havia algo errado em mim que eu não via. Que o jeito de gritar, de rir, de estar, precisava ser aparado.


Desde aquele dia, minhas brincadeiras foram se encolhendo como bicho assustado. As meninas se afastaram. Os meninos nunca chegaram. Fiquei no meio, sem bordas, sem território — um entre-lugar feito de poeira e hesitação.


Ali começou o exílio: não o de quem vai embora, mas o de quem não é mais chamado. Tudo o que eu fazia passou a ser lido por um filtro que eu ainda não compreendia. Se eu corresse, era um correr errado; se risse, era um riso errado. Eu era o próprio erro, antes mesmo de ser nomeado.


Hoje entendo. O bem-te-vi era um presságio. Morto, mas ainda servindo de brinquedo — como eu, lançado de um lado a outro, sem pouso, até perder o voo.


Ser o que se é tem preço. A solidão é a fatura. E eu sigo pagando, inteiro, caro — porque nada é mais dispendioso que existir à vista do mundo.

22/10/2025

Pré-treinos e desistências


Desisti da corrida. O motivo é pequeno demais para justificar-se e grande demais para ser ignorado. Seria o único homem — e, ironicamente, o único gay — entre um grupo de mulheres que se conhecem por dentro dos silêncios. Eu seria o corpo estranho, a nota que desafina, o olhar que não se encaixa. Há um desconforto em existir onde não há espelho — um mal-estar que não vem dos outros, mas da própria consciência de estar deslocado.

Essas mulheres me cercam por acaso, como presenças orbitando a mesma rotina. Não são minhas amigas, tampouco estranhas. São figuras de um mesmo cenário que se repete, dia após dia, até parecer natural. Compartilhamos o tempo — esse tempo utilitário que se gasta, não se vive. O que nos une não é afinidade, mas convivência.

E eu, nesse meio, hesito. Há um medo quase físico de parecer o chaveirinho gay, o ornamento simpático que o mundo aprendeu a incluir para parecer mais justo. Essa ideia me repugna. Não quero ser o alívio cômico, o confidente neutro, o homem inofensivo que só serve enquanto não ameaça. Por isso desisti da corrida: não suportaria o gesto do incentivo, o sorriso de quem pensa estar acolhendo.

A corrida seria apenas mais uma representação — o corpo fingindo vigor, a mente disfarçando exílio. Preferi o silêncio, a ausência, o não-gesto. Há mais verdade em não estar do que em forçar presença onde não há lugar para o que sou.

E o que sou? Talvez nada mais que um intervalo. Um hiato entre identidades possíveis, uma pausa sem destino entre o desejo e o cansaço. Não pertenço, não recuso. Apenas existo — de modo provisório, consciente, absurdo.

No fim, todos somos isso: fragmentos tentando parecer inteiros, pequenos lapsos de sentido flutuando num tempo que não exige explicações. Hiatos tolos e passageiros, convencidos — por um instante — de que havia alguma corrida a vencer.


19/10/2025

Oficina cósmica


  Toda manhã, antes que o sol tenha coragem de nascer inteiro, saio com o cachorro. O asfalto ainda úmido, o ar suspenso entre o fim da noite e o início de um dia que já nasce cansado. É nesse intervalo que ele aparece — uma voz distante, metálica, repetindo o mesmo chamado:

“Olha o conserto! Olha o conserto!”

O som vem do fundo da rua, arrastando-se como quem insiste em existir. Quando me aproximo, vejo sempre a mesma cena: o homem, magro, quase um espectro, pedalando sua bicicleta enferrujada. Na frente, uma caixa plástica amarrada com fios e, sobre ela, uma haste improvisada. Na ponta, uma hélice de ventilador, inútil, girando ao vento inexistente da manhã.

“Olha o conserto.”

A caixa está vazia. Sempre. E mesmo assim ele anuncia seu ofício com a fé de um profeta que não tem seguidores. Ninguém responde. Ninguém nunca responde. Apenas o eco entre as casas e o cão que fareja o chão como se procurasse restos de sentido.

Penso, às vezes, que ele não conserta coisas. Que sua frase é um aviso. Um diagnóstico. Um espelho.
Olha o conserto.
Como se dissesse: olhem o que precisa ser consertado — mas ninguém olha, ninguém para.

Talvez ele conserte o que não se vê: a pressa dos que atravessam a rua rumo ao trabalho, as vidas dobradas dentro de uniformes, o silêncio que sufoca as manhãs. Talvez ofereça reparos nas almas, remendos no desejo, lubrificação nas engrenagens do tédio.

Mas não há freguesia para isso.

Ele segue. Eu sigo.
O cachorro puxa a coleira, e o grito se apaga na distância, como um mantra falido.

“Olha o conserto.”

E penso: talvez não haja conserto algum — nem para a rua, nem para o homem, nem para mim.
Talvez reste apenas o ato de gritar, repetir, insistir.
Como quem tenta, sem esperança, ajustar o mundo que já nasceu quebrado.

04/10/2025

Não há fuga. Não há retorno. Os lugares e rostos que a memória entalhou são cadáveres em vida, perfeitos apenas na mentira que insistimos em chamar de lembrança. Queremos correr, nos jogar no abraço da ilusão, mas o chão é só chão, e nada espera, nada acolhe.Dói como o corpo grita por água enquanto o mundo diz “fique seco”. Dói como segurar o mar na mão, ver a onda se espalhar e não poder ser arrastado por ela. Cada passo que damos para não sucumbir ao passado é um corte aberto na carne da alma, uma ferida que sangra lembranças e desejos que nunca existiram fora da mente.Vivemos enlutados. Não pelo que perdemos, mas pelo que nunca foi. O presente nos olha com vazio e exige presença que não temos. O impulso de voltar, de buscar, de dissolver-se na memória é uma dor física: aperta o peito, queima a garganta, arrasta os pés. Resistir é respirar através do ferro, é aprender a caminhar com ossos partidos, sem poder tocar o conforto que a imaginação oferece.E ainda assim seguimos. Cada passo é um duelo com nós mesmos, com a ilusão que nos chama, com o desejo que nos rasga por dentro. Sobrevivemos não pelo prazer, mas pelo peso de nos mantermos vivos no instante real, onde nada é perfeito, nada nos espera, e tudo dói exatamente como é.

Não há fuga. Não há retorno. Os lugares e rostos que a memória entalhou são cadáveres em vida, perfeitos apenas na mentira que insistimos em chamar de lembrança. Queremos correr, nos jogar no abraço da ilusão, mas o chão é só chão, e nada espera, nada acolhe.

Dói como o corpo grita por água enquanto o mundo diz “fique seco”. Dói como segurar o mar na mão, ver a onda se espalhar e não poder ser arrastado por ela. Cada passo que damos para não sucumbir ao passado é um corte aberto na carne da alma, uma ferida que sangra lembranças e desejos que nunca existiram fora da mente.

Vivemos enlutados. Não pelo que perdemos, mas pelo que nunca foi. O presente nos olha com vazio e exige presença que não temos. O impulso de voltar, de buscar, de dissolver-se na memória é uma dor física: aperta o peito, queima a garganta, arrasta os pés. Resistir é respirar através do ferro, é aprender a caminhar com ossos partidos, sem poder tocar o conforto que a imaginação oferece.

E ainda assim seguimos. Cada passo é um duelo com nós mesmos, com a ilusão que nos chama, com o desejo que nos rasga por dentro. Sobrevivemos não pelo prazer, mas pelo peso de nos mantermos vivos no instante real, onde nada é perfeito, nada nos espera, e tudo dói exatamente como é.


Agelus

 Às 18h, a melancolia se revela, vestindo o disfarce da saudade, mas o que pulsa por baixo é o ego ferido — o incômodo de perceber que tudo o que passou não volta, mesmo quando ainda lembramos. O dia finda e, com ele, se impõe uma contagem silenciosa: todos os que cruzaram nosso caminho, os marcantes e os quase invisíveis, compartilhando o mesmo destino inevitável — tornar-se passado.


Entre uma lembrança e outra, surge a dúvida: será que fui realmente esquecido, ou apenas os laços se romperam, as conveniências se desfizeram, e o mundo seguiu seu curso indiferente? Talvez o esquecimento jamais seja total; alguns esquecimentos fracassados e rotos permanecem, não como presença, mas como ecos do que fomos e do que já não podemos ser.

Na hora do anjo, a mente tenta preencher o vazio: imaginamos o que os outros fazem, onde estão, se ainda existem em algum fragmento de consciência. Mas a superação não é libertação, é risco — o risco de confrontar novamente o fracasso das relações, de repetir o ciclo inevitável: todos os encontros, cedo ou tarde, se dissolvem no passado. E, nessa dissolução, reside a mais crua constatação: somos passageiros, e tudo o que tocamos é efêmero, memórias que resistem apenas enquanto nos lembramos.


Água procura caminho

 Na curva do rio ficam os destroços — o que já não serve à travessia. Amores saturados de pressa, gestos inacabados, palavras que não suportaram o peso do silêncio. O curso das águas não se detém; ele carrega apenas o que ainda pulsa, o que tem densidade suficiente para continuar. O resto, o leve demais, o frágil demais, se encosta na margem e apodrece devagar, como se o tempo ali fosse mais viscoso.


Vivemos num mundo onde os vínculos se desfazem antes de secar a primeira lágrima. O toque virou metáfora, e a presença — notificação. Tudo flui, dizem, mas o que flui demais não cria raiz; apenas atravessa, como um corpo sem memória. Cada encontro é um estilhaço, um lampejo que já nasce condenado ao esquecimento. A liquidez das relações não dissolve a solidão, apenas a disfarça com reflexos e promessas.


O rio segue — indiferente. Não há culpa na correnteza, apenas instinto. O que presta resiste à força da água, adapta-se, encontra novas margens. O que não presta — e talvez sejamos nós, ou o modo como amamos — fica ali, retido na curva, lembrança de uma permanência que não soubemos sustentar.


E o rio continua, como o tempo, como a vida: carregando e descartando, escolhendo sem escolher, limpando-se do peso dos laços que não soubemos manter.


Amnésia rota ou como não se esquecer

 Como vou enterrar meus cadáveres se o cheiro deles é o único cheiro que me lembra que existo?

Como vou esquecer o passado se ele é a única coisa que me sustenta, mesmo que seja veneno?

Como apagar o presente se ele já nasce morto, um teatro de gestos sem atores?


As pessoas que não esqueci apodrecem dentro de mim como frutas negras.

Não é amor, é rancor — um rancor que se alimenta de memória, um ressentimento que me costura por dentro.

Cada lembrança é um dente cravado na carne.

Eu não quero perdão. Eu não quero absolvição. Eu quero que as coisas explodam, que as promessas desabem, que o esquecimento seja um ácido.


Mas nada desaba. Nada explode.

Tudo permanece: como um cadáver que se recusa ao luto, como uma boca que insiste em falar depois de arrancada.

Eu sou a cova e o coveiro.

Sou amnésia que tarda.

O Parkinson roto.

Eu sou o resto.