Toda manhã, antes que o sol tenha coragem de nascer inteiro, saio com o cachorro. O asfalto ainda úmido, o ar suspenso entre o fim da noite e o início de um dia que já nasce cansado. É nesse intervalo que ele aparece — uma voz distante, metálica, repetindo o mesmo chamado:
“Olha o conserto! Olha o conserto!”
O som vem do fundo da rua, arrastando-se como quem insiste em existir. Quando me aproximo, vejo sempre a mesma cena: o homem, magro, quase um espectro, pedalando sua bicicleta enferrujada. Na frente, uma caixa plástica amarrada com fios e, sobre ela, uma haste improvisada. Na ponta, uma hélice de ventilador, inútil, girando ao vento inexistente da manhã.
“Olha o conserto.”
A caixa está vazia. Sempre. E mesmo assim ele anuncia seu ofício com a fé de um profeta que não tem seguidores. Ninguém responde. Ninguém nunca responde. Apenas o eco entre as casas e o cão que fareja o chão como se procurasse restos de sentido.
Penso, às vezes, que ele não conserta coisas. Que sua frase é um aviso. Um diagnóstico. Um espelho.
Olha o conserto.
Como se dissesse: olhem o que precisa ser consertado — mas ninguém olha, ninguém para.
Talvez ele conserte o que não se vê: a pressa dos que atravessam a rua rumo ao trabalho, as vidas dobradas dentro de uniformes, o silêncio que sufoca as manhãs. Talvez ofereça reparos nas almas, remendos no desejo, lubrificação nas engrenagens do tédio.
Mas não há freguesia para isso.
Ele segue. Eu sigo.
O cachorro puxa a coleira, e o grito se apaga na distância, como um mantra falido.
“Olha o conserto.”
E penso: talvez não haja conserto algum — nem para a rua, nem para o homem, nem para mim.
Talvez reste apenas o ato de gritar, repetir, insistir.
Como quem tenta, sem esperança, ajustar o mundo que já nasceu quebrado.
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