24/06/2025

São João


 Na ressaca da noite barulhenta, o dia nasceu parado. Sem vento. Só cinza e silêncio. A fumaça ainda subia, devagar. Cinza no céu, cinza no chão. Nada sobrou do fogo.

Parecia o fim de uma guerra. Mas foi só o dia depois da festa de São João. Os estouros eram de alegria. O fogo era pra esquentar. Nada disso era pra acabar com nada. É assim o São João.

Ele explode de alegria, como fogos que brilham e somem. Deixa a fumaça da festa. Ah, São João! Sobrou só a cinza no chão, mas um calorzinho estranho no peito. Uma lembrança boba de que, mesmo depois de tudo virar pó, algo sem explicação ainda fica, meio sem sentido, mas fica.


Dialética destroçada

 Não há lugar no mundo pra mim —  

sou sobra de silêncio que ecoa,  

vestígio de um plano que nunca fui.  


Tudo o que você sente, eu rasgo:  

vento que desfaz mapas,  

risco no vidrovdo eterno.  


Sou o gume do que você imagina,  

o contrafluxo da sua esperança.  


Sinto muito —  

e este muito é um deserto que floresce.  

A equação sangra números falsos,  

engasga em x que não se resolve.  


Ele me diz:  

"Prefiro acreditar no que imagino,  

ser luz falsa,  

mesmo quando tudo  

desaba em cinza."  


E eu — naufrágio que tece algas —  

cuspindo âncoras:  

"Guarde seu castelo de ar.  

Não quero sujar-lhe o véu."  


Mas hoje,  

hoje eu mordo o não  

cravado em meu céu.  

Vejo selos com frestas,  

fósseis de passos,  

tempo que fermenta,  

impossibilidades afiadas  

como facas de mim mesmo.  


A vida…  

esta queda que constrói abismos,  

este grito que escava respostas.


A casa da carne ( versos sem intimidade)


Quem vai me indenizar pelos gritos que engoli a seco?
Pelos cortes invisíveis que sangram por dentro
e empapuçam meu silêncio de ferrugem?

Quem vai cobrir o rombo que a vida fez em mim?
Essa hemorragia lenta
que começa na alma
e escorre pelos olhos sem aviso?

Morrer talvez não doa.
Mas viver arranca o couro.
É prego no peito,
faca cega na costela,
agulha suja espetando os dias.

Conheço todas as dores porque elas me comeram por dentro.
Roeram meu fígado,
mastigaram meus nervos,
lamberam minhas vísceras como se fossem banquete.

A quem envio esse corpo em ruínas?
A que autoridade reclamo a amputação dos meus sonhos?
Quem me paga pelos pedaços de mim
que abandonei em cada escolha fictícia?

Me prometeram futuro —
me entregaram restos.
Me disseram esperança —
recebi espinhos
no estômago, no sexo, no coração.

Não há recibo do que sofri.
A vida não emite nota fiscal.
Sou a mercadoria vencida
jogada no fundo da prateleira do mundo.

E sigo vivo,
porque não aprendi a morrer.
Mas cada dia me esfaqueia um pouco mais.
E eu sorrio com a boca rasgada,
tentando parecer inteiro
enquanto carrego tripas nos bolsos.




23/06/2025

A equação sem céu



Não há lugar no mundo pra mim 

sou um erro de digitação no mapa.
Sou o que não coube em parte alguma,
um eco sem voz, um fim sem meio.

Tudo isso que você sente
é ilusão com data de validade vencida,
um afeto que evapora na primeira corrente de ar,
um trem fantasma sem rota nem trilho.

Sou nada do que você pensa.
Sou menos do que o que você sente.
Sinto muito e sou pouco.
Menos que pouco. Um quase. Um nunca.

A equação não tem resposta.
O X desistiu de ser incógnita.
A lógica é uma gargalhada sem som
num abismo onde a gravidade
também perdeu a fé.


22/06/2025

Manual para um Estrangeiro de mim Mesmo




Não me preocupo mais com ele.

Dei alta ao delírio amoroso

e deixei ele na portaria do meu desinteresse.

Não quero. Não duvido. Não tem suspense.

O problema é outro,

é a mobília desarrumada da minha existência.


A dúvida agora é uma cadeira sem perna

num apartamento onde até o silêncio paga aluguel.

É a solidão vestida de terno,

me oferecendo café amargo às 3h37 da manhã

enquanto questiono por que os espelhos não me respondem em voz alta.


Sou estrangeiro em todas as geografias —

inclusive em mim.

Falo mal todas as línguas,

inclusive a do afeto.

Não sei sorrir sem parecer um anúncio de derrota

nem abraçar sem parecer um susto.


Esse não-pertencimento me rói as pontas,

como rato que lê Camus em noites de tempestade.

Sou socialmente analfabeto:

não sei conjugar o verbo “estar junto”

sem tropeçar nas vogais.


Eis meu drama:

sou só.

Mas não uma solidão de violino.

Sou só como um semáforo no deserto,

como um elevador em prédio abandonado,

como um convite perdido em caixa de spam.


Nada é trágico demais,

tudo é só ridiculamente sem sentido.

E eu sigo,

como quem continua existindo só pra ver

no que vai dar essa palhaçada.

Manual para Desaparecer em Silêncio (ou a alegria de ser um interruptor queimado)



Sou o avesso do entusiasmo,
um guarda-chuva que abre para dentro,
carrego vinagre nos sonhos
e derramo sal no calendário.

Vou te tomar o tempo
e devolver um relógio derretido,
com ponteiros que apontam
para lugar nenhum.

Não há salvação no que sou:
um não-folheto de turismo
para a cidade onde não nasci.
Não gosto de festas —
os balões me devoram.
Não danço. Eu gotejo.
Rir? Só com reticências.

Nem os filmes nos conectam:
você assiste ao sol nascer,
eu só vejo a legenda errada.
Nem a música nos reconcilia:
você ouve pássaros,
eu escuto ferros retorcendo.

Sou silêncio embriagado de eco.
Presença feita de falta.
Às vezes sou um poste que não acende,
ou um mapa dobrado ao avesso.

Lembra da caminhada?
Você era cometa.
Eu era um sapato sem pé.
Você queria céu —
eu via poças,
e me afogava nelas de lado.

Não devemos acorrentar borboletas
a móveis antigos.
Não devemos prometer voo
a quem prefere subterrâneo.

Sou desistência com RG vencido.
Solitário até nas vozes da cabeça.
Fui abrigo com goteira,
e pedra —
não na mochila,
mas no rim emocional de quem tentou me amar.

Sou esse corpo velho de alma dobrada,
um enfeite de cemitério em liquidação.
Feio nos olhos que só refletem monóxido.
Fraco nos músculos
e nos domingos.

Sou o que fica depois do fim do mundo:
peso morto de um pensamento não pensado,
rastro de um amor que tropeçou no próprio nome,
eco de um grito que bocejou antes de sair.