Sou o avesso do entusiasmo,
um guarda-chuva que abre para dentro,
carrego vinagre nos sonhos
e derramo sal no calendário.
Vou te tomar o tempo
e devolver um relógio derretido,
com ponteiros que apontam
para lugar nenhum.
Não há salvação no que sou:
um não-folheto de turismo
para a cidade onde não nasci.
Não gosto de festas —
os balões me devoram.
Não danço. Eu gotejo.
Rir? Só com reticências.
Nem os filmes nos conectam:
você assiste ao sol nascer,
eu só vejo a legenda errada.
Nem a música nos reconcilia:
você ouve pássaros,
eu escuto ferros retorcendo.
Sou silêncio embriagado de eco.
Presença feita de falta.
Às vezes sou um poste que não acende,
ou um mapa dobrado ao avesso.
Lembra da caminhada?
Você era cometa.
Eu era um sapato sem pé.
Você queria céu —
eu via poças,
e me afogava nelas de lado.
Não devemos acorrentar borboletas
a móveis antigos.
Não devemos prometer voo
a quem prefere subterrâneo.
Sou desistência com RG vencido.
Solitário até nas vozes da cabeça.
Fui abrigo com goteira,
e pedra —
não na mochila,
mas no rim emocional de quem tentou me amar.
Sou esse corpo velho de alma dobrada,
um enfeite de cemitério em liquidação.
Feio nos olhos que só refletem monóxido.
Fraco nos músculos
e nos domingos.
Sou o que fica depois do fim do mundo:
peso morto de um pensamento não pensado,
rastro de um amor que tropeçou no próprio nome,
eco de um grito que bocejou antes de sair.